quarta-feira, 10 de agosto de 2011

HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA


               Sirley José Mendes da Silva*

     Cristóvão é um professor de  língua  portuguesa aposentado. Não só de português, mas também de latim e grego, disciplinas que lecionou em diversos cursos, em escolas e faculdades conceituadas. Hoje, viúvo, mora numa  casinha aconchegante, com uma varanda e, na frente, um lindo jardinzinho.  Vive cercado pelos carinhos de sua única filha, do genro e de sua também única  neta, Mariana, que é  a fina flor das garotas de Arujá, cidade que o nosso personagem escolheu para terminar os seus dias.
    Mariana é uma garota que está na casa dos seus dezoito anos.. Que alia beleza, inteligência, simpatia e educação. Estudiosa, tem enorme interesse – e nisso puxou o avô – pelas línguas, quer sejam clássicas ou modernas. Cursando o primeiro ano de Letras na USP, adora conversar com Cristóvão, do qual absorve ensinamentos que sabe serão úteis a ela na vida, hoje de estudante e amanhã de  professora ou pesquisadora.
     Numa tarde ensolarada, após a sesta, Cristóvão estava sentado na varanda, admirando a beleza das flores de seu jardim, quando Mariana entrou pelo portão e, num átimo, abraçou e beijou o avô. A presença da neta pareceu, para Cristóvão, ofuscar a beleza das flores. Era como que uma flor-menina-mulher tornasse as flores do jardim inferiores em beleza. 
      Refeito daquele estado momentâneo de êxtase, Cristóvão perguntou a Mariana:
      - A que devo a visita da princesinha?
      Mariana sentou-se em frente do velho professor, olhou carinhosamente para ele e pediu:
      - Vô, me fale um pouquinho sobre a história da língua portuguesa.
     Nem é preciso dizer, caro leitor e cara leitora, que esse é um dos assuntos prediletos do velho mestre. E em se tratando da neta, é evidente que ele tem um prazer maior em discorrer sobre o tema. E assim Cristóvão começou:
      - Para contar a história da língua portuguesa, primeiro é preciso falar da Península Ibérica e de sua romanização.
      - Península Ibérica e romanização? – admirou Mariana.
      Com a calma pedagógica de todo professor experiente, Cristóvão continuou:
      - Península Ibérica é uma região que se situa na parte ocidental da Europa; é banhada pelo oceano Atlântico. É nessa península que se encontram Espanha e Portugal.  Romanização é o processo de dominação dos romanos na península. É importante saber como a Ibéria foi romanizada, porque tanto o espanhol como o português vieram do latim, língua falada pelos habitantes de Roma.
     A moça era só atenção, parecia querer sorver cada fonema que formava as palavras do avô. Este prosseguiu:
      - Os mais antigos povos que habitaram a Península Ibérica parece que foram os cântabros-pirenaicos e os mediterrâneos  Destes surgiram iberos e daqueles, os bascos.
    Cristóvão interrompeu, por um instante, a narrativa e pôs-se a admirar um beija-flor que beijava uma rosa do jardim. Depois prosseguiu:
     - Os iberos eram povos pacíficos, que se dedicavam especialmente à agricultura; acabaram tendo dominância sobre a península. Tanto é verdade que foram esses povos que deram o nome à região: Península Ibérica ou Ibéria.
     Agora foi Mariana que se mexeu na cadeira, como a encontrar uma posição para melhor assimilar a explanação do avô.
    - Depois  vieram – continuou Cristóvão -, lá pelo século V a.C., os celtas. Estes povos, diferentemente dos iberos, eram belicosos, viviam procurando encrencas. Com o passar dos séculos, celtas e iberos se fundiram, formando os celtiberos.
    O velho mestre levantou-se, entrou na casa; voltou com uma jarra de água e dois copos. Colocou os copos numa mesinha que havia na varanda, encheu-os. Pôs a jarra na mesa, ofereceu um dos copos à neta e tomou o outro.
    - Em tempos muito remotos, gregos, fenícios e cartagineses estabeleceram colônias na península. Destes povos, é importante destacar os cartagineses, que mantiveram com os romanos uma guerra que durou de 264 a 146 a. C.: as Guerras Púnicas.
- Qual foi a causa dessas guerras e por que são chamadas de guerras púnicas? – perguntou Mariana.
     - Guerras púnicas porque púnico era o dialeto falado pelos cartagineses. A causa da guerra foi a ambição de Aníbal, general cartaginês, que pretendia expandir os domínios de Cartago. Representava, portanto, um perigo para o Império Romano. Daí a refrega que durou tanto tempo.
     - E quem saiu vencedor nessa guerra? -  inquiriu a moça.
   - Roma - respondeu Cristóvão. Atendendo ao pedido de socorro de Sagunto, cidade fundada pelos gregos e que se achava ameaçada por Aníbal, Roma resolveu mandar, em 219 a. C., seu exército para a Península Ibérica. Vencidos os cartagineses, os romanos trataram de conquistar a península. Para isso, procuraram impulsionar o progresso da região: abriram estradas, criaram escolas, os serviços de correio, organizaram o comércio. A verdade é que no ano 25 de nossa era, a península estava totalmente romanizada, já fazia parte do Império Romano.
      - E o que tem tudo isso a ver com a língua portuguesa, vô? – perguntou Mariana.
     - Calma, princesinha! Deixe-me continuar a explanação. Na península, falava-se um dialeto local. Esse dialeto foi, com o passar do tempo, misturando-se com o latim, formando o que se convencionou chamar de romance, isto é, falar à moda de Roma. Como a península era muito grande, em cada região surgiu um romance diferente. Foram desses romances que nasceram as línguas espanhola e portuguesa.
       Cristóvão fez uma leve pausa, passou a mão pela testa e continuou:
      - Mas é preciso saber que havia em Roma duas modalidades de latim: o latim clássico – sermus classicus, urbanus ou eruditus – falado pelas pessoas cultas: escritores, poetas, oradores, etc, e o latim vulgar – sermus vulgaris, plebeius ou rusticus – falado pelo povão.
       Cristovão fez mais uma pausa e prosseguiu:
      - A conquista da Península Ibérica foi realizada por soldados, seres geralmente incultos e que falavam o latim vulgar. Foi esse tipo de latim que se misturou com os diversos falares regionais e deu ensejo à formação dos romances.
      - Peraí, vô! – interrompeu Mariana. Se o latim vulgar era falado pelo povão, então era um latim errado, como hoje o português do povão é um português cheio de erros.
       - Não é bem assim, princesa. Considerar o português ou o latim do povo como errado é um grande preconceito. O que acontece é que esse tipo de português ou latim não segue as mesmas normas seguidas pelo português culto, pelo latim clássico. É preciso colocar as coisas nos seus devidos lugares.
        - Tudo bem, vô! Já compreendi que o nosso português tem origem no latim vulgar que se misturou com um falar regional. Mas que região foi essa e como se deu essa evolução?
         - Princesinha impaciente, preste bem atenção!
         Cristovão bebeu mais um pouco de água e continuou:
         - O domínio romano na Península Ibérica durou até o século V d. C. Nesse século, a Ibéria foi invadida pelos bárbarosvândalos, suevos, visigodos. Povos extremamente belicosos, destruíram as grandes obras realizadas pelos romanos. Fecharam escolas, pois achavam que a instrução afeminava o homem. Enfim, os bárbaros tinham uma cultura inferior à cultura dos peninsulares.
        - E esses bárbaros ficaram na península por muito tempo?
        - Por cerca de trezentos anos. No século VIII, os árabes, vindos do Norte, comandados por Tárique, atravessaram o estreito de Gibraltar e desembarcaram na península. Com um exército mais poderoso e mais bem organizado, levaram de vencida os bárbaros e tornaram-se senhores de toda a Ibéria. O último e definitivo combate ente mouros (outro nome pelo qual eram conhecidos os  árabes) e bárbaros deu-se , no ano de 711, às margens do rio Crissus ou Guadalete.
- E os árabes eram ignorantes como aqueles bárbaros? – perguntou Mariana.
        - Não. A cultura árabe era muito superior à dos peninsulares. Os mouros protegiam e incentivavam as artes, as letras, as ciências. Incrementaram a medicina, a matemática, a filosofia, a agricultura, o comércio, a indústria. Grandes sábios, como Avicenas e Averroes, difundiram o saber por toda a região.
            - Ainda bem! – proferiu a moça.
          - Apesar de sua elevada cultura, os árabes não conseguiram impor aos peninsulares nem a religião nem a língua. A despeito de dominados, os povos da península continuaram a falar o romance – que, como já falei, era o latim vulgar já modificado – e a seguir a religião cristã.
- Legal, vô!
- Mas, apesar da diferença de raça, língua, religião e costumes, uma pequena parte da população peninsular resolveu adotar a civilização árabe. Esses peninsulares ficaram conhecidos por moçárabes.
Agora foi a vez de Mariana tomar mais um gole de água. Feito isso, a moça perguntou:
- Assim como os moçárabes, todos os habitantes da península aceitaram passivamente o domínio dos árabes?
- Na verdade, os peninsulares nunca aceitaram de todo o domínio mouro; acalentavam sempre o sonho de expulsar os muçulmanos de suas terras.
- Vô, não eram os árabes ou mouros os invasores? Agora aparecem os muçulmanos?
- Calma, princesinha! Muçulmanos é outro nome que se dá aos árabes ou mouros. Isso porque eles praticavam  a religião muçulmana, ou seja, a religião de Maomé, cujo deus é Alá. Mas isso é outra história.
- Ah, bom!
- Então os cristãos, chefiados por Pelágio, organizaram um exército, que se refugiou nas montanhas das Astúrias, dando início à campanha pela reconquista. Os sucessores de Pelágio continuaram a luta pelos séculos a fora. Os mouros só foram expulsos definitivamente, em 1492, pelos reis católicos Fernando e Isabel, respectivamente de Castela e Aragão. A batalha final e decisiva ocorreu em Granada.
- E Portugal, onde entra nessa história?
- Princesinha apressada, tenha paciência, que vou chegar lá.
Um lindo canarinho pousou num dos galhos da roseira. Depois de admirar o pássaro por um instante, o velho professor prosseguiu:
- Um dos reis que maiores esforços despendeu na luta contra os mouros foi Afonso VI, de Leão e Castela. Esse rei chegou a contratar exércitos de outras terras para ajudar-lhe na luta  Entre esses exércitos contratados estava o de D. Henrique, natural de Borgonha, região do sul da França.
- Interessante – aparteou Mariana.
- D. Henrique de Borgonha prestou tão relevantes serviços a Afonso VI, que este, reconhecido, ofereceu àquele, como recompensa, a mão de sua filha bastarda, D. Tereja, e um pequeno condado, chamado Condado Portucalense, que foi desmembrado da Galiza. Esse condado, a princípio, estendia-se do rio Minho até o rio Vouga; expandiu-se a partir de 1095 até a foz do rio Tejo.
- Esse condado é hoje Portugal? – perguntou Mariana.
- Em parte – retrucou Cristóvão. Posteriormente, no século XIII, Portugal, firmado como nação, expandiu-se para o sul até o Algarve, constituindo o que é hoje o País. Mas espere, princesinha!
Cristóvão levantou-se, pegou a jarra, que se esvaziara; entrou na casa; voltou com a vasilha cheia novamente. Depois de beber o precioso líquido, no que foi seguido pela neta, continuou.
- Do casamento de D. Henrique de Borgonha com D. Tereja, nasceu um menino, que se chamou Afonso-Henriques. Com a morte do pai, Afonso-Henriques, já moço feito, desentendeu-se com a mãe, porque esta pretendia se casar, em segundas núpcias, com o nobre D. Fernão Peres de Trava, de Castela. Tal casamento, segundo a visão do filho, representava um perigo às pretensões de independência do Condado Portucalense. Então as forças partidárias do jovem entraram em luta com as forças de D. Tereja, auxiliadas estas pelas tropas do nobre castelhano.
- Que triste! – comentou a moça.
- Da refrega, saíram vencedoras as tropas de D. Afonso-Henriques. A batalha decisiva ocorreu em Ourique. Estava-se em 1139. Após a vitória, os soldados vencedores desembainharam suas espadas, levantaram-nas para o alto e bradaram: “Em nome de Deus, viva D. Afonso-Henriques, rei de Portuga!”. Nascia, assim, uma nova nação no cenário europeu. A independência portuguesa foi reconhecida em 1143, pela Conferência de Zamora.
            - Tudo bem – interveio Mariana. E a língua portuguesa?
            - Ainda há pouco, falei que o latim vulgar misturou-se com dialetos locais dando ensejo à formação dos chamados romances. Na região da Galiza e do Condado Portucalense, falava-se um romance conhecido como galeziano ou galaico-português. Com o surgimento de Portugal como nação livre e com sua expansão para o sul, o dialeto falado em terras lusas foi se modificando cada vez mais daquele falado na Galiza. Enquanto o galeziano era absorvido pelo espanhol, o português se erigia como língua oficial de um povo livre.
            - E é o português que falamos hoje! – completou Mariana.
            - É, mas com algumas diferenças.
            - Como assim?
       - Do mesmo modo que o latim vulgar, em contato com falares regionais, tornou-se romances e depois se transformou nas línguas neolatinas, estas também foram modificando-se com o transcorrer dos tempos. Assim o português de hoje é bastante diferente daquele falado no início. Toda língua é dinâmica, modifica-se com o passar das gerações.
            Agora foi a vez de Mariana encher seu copo e o do avô de água. Depois que os dois beberam, Cristóvão continuou:
            - Segundo o lingüista português José Leite de Vasconcelos, nossa língua compreende três eras: a pré-histórica (que vai do tempo de romance até o século IX); a proto-histórica (período que vai do século IX até o século XII e em que a língua era apenas falada e não escrita) e a histórica que se estende do século XII até a atualidade. A era proto-histórica viu surgir, em 1189, o primeiro documento escrito da língua portuguesa: a Cantiga da Ribeirinha (ou Canto de Guarvaia), cantiga de amigo escrita por Paio Soares de Taveirós, em homenagem a D. Maria Pais Ribeiro (apelidada Ribeirinha), amante do rei D. Sancho I.
            - É? – admirou Mariana.
              E o avô continuou:
       A era histórica, por sua vez, ainda de acordo com os estudos de José Leite de Vasconcelos, está dividida em duas fases: a arcaica (que vai do século XII ao século XV)  e a moderna, que se estende do século XV até hoje. Foi no início da fase moderna que surgiram nossas primeiras gramáticas - a do pe. Fernão de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540). Mas a grande obra dessa fase foram Os lusíadas, poema épico escrito por Luís Vaz de Camões, verdadeiro monumento artístico da língua portuguesa.
           - Vô, além de Portugal e Brasil, que outros países falam atualmente a língua portuguesa? - inquiriu Mariana.
          - Minha princesinha, o português é, hoje, língua oficial de oito países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
            Mariana levantou-se, foi até o jardim, colheu uma lindíssima rosa branca e entregou ao avô, abraçando-o e beijando-lhe a testa. Depois assim se manifestou:
            -Vô, o senhor é a pessoa mais linda e inteligente do mundo. Deus queira que um dia eu tenha a metade da sabedoria que o senhor tem.
            Lágrimas de emoção rolaram pelas faces do velho professor.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina, 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2000
BUENO, Francisco da Silveira. Estudos de filologia portuguesa, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1967.
CARVALHO, Dulce Garcia; NASCIMENTO, Manuel. Manual de gramática histórica, 12. ed. São Paulo: Ática, 1977.
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica, 7. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.
CRETELA JÚNIOR, José. Latim para o ginásio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961.
OLIVEIRA, Cândido de. Súmulas de literatura portuguesa, 12. ed. São Paulo: Biblos, s.d.
PAIVA, Dulce de Faria. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1988. (v. II)
PINTO, Rolando Morel. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1988. (v. IV)
SPINA, Segismundo. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1988. (v. III)

* Sirley José Mendes da Silva é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, doutor em Letras pela USP e professor da FAR.