AVALIAÇÃO
Sirley José
Mendes da Silva
Eugênia e Eulália eram
duas irmãs que se amavam muito. Ambas professoras, trabalhavam na mesma escola,
onde lecionavam para alunos do ciclo básico. Eugênia era mais velha e tinha
alguns anos a mais de experiência. Por isso, Eulália - recém-formada e que
exercia o magistério pelo primeiro ano - a tinha como mestra e sempre buscava a
orientação da irmã na resolução de
quaisquer problemas, quer fossem de ordem didático-pedagógica ou de outra
monta.
Uma
tarde, Eulália estava sentada à mesa que havia na sala onde as duas normalmente
estudavam, preparavam suas aulas, corrigiam provas, trabalhos, etc. A moça,
porém, não estava trabalhando; seu rosto, parado, dirigia o olhar, fixo, para a
parede fronteiriça. Parecia estar vagando pelos recantos de uma profunda
reflexão. Foi nesse instante que Eugênia entrou na sala.
-
Está pensando na morte da bezerra, Eulália? – perguntou a irmã mais velha. Ou
arranjou algum namoradinho e ele, agora, está tomando conta de seus
pensamentos?
-
Não é nada disso – redarguiu a outra. É que na próxima semana começo a avaliar
os meus alunos e estou aqui pensando em fazer uma avaliação mais justa, que
meça com mais realidade o desenvolvimento das crianças.
-
Essa dúvida, disse Eugênia, permeia a consciência de todo educador, pois
avaliar é muito difícil.
Então,
Eulália, com uma voz que traduzia humildade e uma profunda vontade de aprender,
assim se dirigiu à irmã:
-
Eugênia, você que tem muito mais experiência que do eu, diz que avaliar é
difícil; se é difícil pra você, pra mim então... Fale, querida irmã, um
pouquinho que seja, sobre o tema para essa sua irmãzinha que está começando
agora e que se acha meio perdidinha.
Eugênia
contornou a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se de frente para a irmã. Olhou
fundo nos olhos de Eulália:
-
Sabe, Eulália, foi muito bom você trazer à tona este assunto: dá-nos o ensejo
de fazer uma reflexão acurada sobre a questão e, assim, amadurecermos um pouco
mais no mister de educadores.
A
irmã mais nova franziu o cenho interrogativamente. Eugênia continuou:
-
Avaliar é um verbo formado por parassíntese. Seus elementos formadores são o
prefixo a, o radical valia e a desinência verbal ar.
Agora
foi a vez de Eulália falar:
-
Não atino aonde você quer chegar descrevendo o processo de formação do verbo
avaliar.
-
Calma, queridinha! – retrucou Eugênia. Conhecer a formação do nosso verbo ajuda
e, muito, a compreender a sua significação.
Eugênia
levantou-se foi até um filtro que estava em um canto da sala, tomou um copo de
água; sentou-se novamente e prosseguiu:
-
O a inicial é forma evolutiva do
prefixo latino ad, que significa junto de, próximo a. O radical valia
contém o significado da palavra, ou seja, atribuir-lhe o sentido de valia, valor. A desinência ar,
por ser verbal, expressa a ideia de
processo. Então se formos levar o étimo ao pé da letra, podemos traduzir avaliar por “junto do (ou próximo ao)
valor em processo.
-
Não estou entendendo, disse Eulália.
-
Vou explicar melhor, continuou Eugênia. Procure acompanhar o meu raciocínio.
Pelos estudos morfológicos, ficamos sabendo que o radical é a parte que contém
a significação da palavra; logo é em valia
que está a significação do verbo avaliar.
Mas no caso, o radical precede-se de um prefixo – a (ad), ou seja, junto de,
próximo a – e segue-se de uma desinência – ar -, que denota processo. Essa estrutura do verbo avaliar me leva a concluir que avaliar é um processo que se aproxima da
realidade. E, pelo caráter aproximativo e processual desse verbo, nenhuma
avaliação – que é a ação de avaliar – pode ser considerada definitiva, acabada,
absoluta.
-
Pensando bem – disse Eulália, depois de alguns instantes – sabe que é isso
mesmo!
-
É, prosseguiu Eugênia. É por isso que a avaliação deve estar sempre presente
nas preocupações de todo educador. E ter consciência desse modo de ser da
avaliação é fundamental para que a apliquemos com mais justiça.
Eulália,
que agora brincava com um lápis, de repente soltou-o sobre a mesa e, ato
contínuo, inquiriu a irmã:
-
Como proceder a uma avaliação com mais justiça quando trabalhamos geralmente
com grupos de alunos tão heterogêneos?
Foi
a vez de Eugênia pegar o lápis que a irmã havia largado:
-
Antes de responder a sua pergunta deixe-me dizer que podemos pensar em diversas
modalidades de avaliação. Um grande número de teóricos já se debruçaram sobre o
tema e criaram formulações, todas elas plausíveis, válidas. Mas vou discorrer
sobre uma formulação da qual eu gosto muito.
Eulália
era toda ouvido. Eugênia continuou:
-
Segundo uma professora que tive no curso de Pedagogia, existem três tipos de
avaliação: a diagnóstica, a somativa e a formativa.
Eulália,
que havia estudado na mesma Faculdade da irmã, interrompeu:
-
Agora estou lembrando. Você está falando da professora Laísa. Lembro quando ela
explicou isso. Também tive aulas com ela.
Aí
foi a vez de Eugênia brincar, soltando o lápis sobre a mesa:
-
Então vamos ver se você foi boa aluna. Discorra sobre os três tipos.
Eulália
não se fez de rogada:
-
Avaliação diagnóstica é aquela que se faz num início de trabalho, a fim de
aquilatar o estágio em que estão os alunos com os quais se vai trabalhar.
-
Muito bem, disse Eugênia. Continue.
-
Avaliação somativa é aquela que se faz quando se quer aferir o quanto os alunos
retiveram de um dado conteúdo ministrado.
-
Perfeito, sentenciou a irmã mais velha.
-
Finalmente – prosseguiu Eulália – a avaliação formativa é um tipo de avaliação
que, além de avaliar, oferece também oportunidade para que o educando aprenda
um pouco mais, percorra um pouco mais no caminho do conhecimento.
-
Isso mesmo – aplaudiu Eugênia batendo palmas, .E depois de uma breve pausa,
disse:
-
Mas é preciso que tenhamos consciência de que esses tipos de avaliação não são
estanques. Eles se complementam.
-
Como assim? - perguntou a irmã.
-
A avaliação diagnóstica é importantíssima, pois é ela que nos vai dar a medida
exata do nível em que estão os alunos com os quais vamos trabalhar.
-
Já sei – interrompeu a irmã mais nova. É a avaliação diagnóstica que vai nos
proporcionar – entre outras coisas - condições para que façamos um planejamento
mais consentâneo com a realidade de nossos alunos.
-
Exatamente – continuou Eugênia. Já as avaliações somativa e formativa, eu diria
que uma não existe sem a outra, elas podem ser consideradas as duas faces de
uma mesma moeda.
-
Explique isso melhor, Eugênia – pediu a irmã.
-
Toda avaliação somativa deve fazer acompanhar-se de uma avaliação formativa.
Explicitando: toda avaliação, além de mensurar o quanto o aluno assimilou de um
dado conteúdo trabalhado, deve servir para que o educando retenha e solidifique
esse conteúdo e que se torne capaz de expandi-lo, quando se fizer necessário.
-
Na prática, como isso se dá? – perguntou Eulália.
Eugênia
pegou novamente o lápis, olhou fixamente para ele e retomou a palavra:
-
Quando aplicamos provas ou trabalhos com questões discursivas – com consulta ou
não -, em que damos oportunidades para que o educando reflita sobre o tema
proposto, estamos servindo-nos de avaliação somativa e formativa.
-
Entendi – disse Eulália. Nesse caso, estamos avaliando a quantidade de
conhecimento retida pelo aluno e também abrindo caminho para que ele conheça um
pouco mais daquele conteúdo.
-
Exatamente – falou Eugênia. Uma outra situação em que podem ser configuradas as
avaliações somativa e formativa é quando após corrigirmos trabalhos propostos
aos alunos, devolvemo-los e fazemos a correção, verbalmente ou na lousa, com
eles.
-
Realmente – concordou Eulália.
-
Eis apenas dois exemplos entre os muitos que podem ser considerados como
avaliação somativo-formativa – disse
Eugênia, deixando novamente o lápis na mesa.
-
Certo – falou Eulália depois de algum tempo. Mas você ainda não me disse como
trabalhar a avaliação com grupos tão heterogêneos como soe acontecer no dia a
dia de nossa prática docente.
Eugênia
fitou a irmã ternamente e proferiu:
-
Aí está uma outra dificuldade do processo avaliativo que sempre nos tira o
sossego; mas temos de superá-la. A avaliação diagnóstica – e aqui só entendo
uma avaliação diagnóstica bem feita, criteriosa - nos dá a real situação dos alunos. Então é
preciso seguir “pari passu” o
desenvolvimento de cada um dos alunos, de sentir como cada um progride. Longe
de estabelecer uma chegada única, ideal, o que devemos fazer é aferir a
extensão do caminho percorrida pelo educando.
-
Como assim? – perguntou Eulália.
Depois
de pensar um pouco, Eugênia propôs:
-
Vamos pensar em dois alunos: A e B. Numa escala de notas de zero a dez, A saí de seis e chega a oito, depois de
certo tempo de trabalho. Considerando a mesma escala e o mesmo tempo, B sai de dois e chega a seis. Qual dos dois teve melhor desempenho?
-
B, lógico! – respondeu Eulália.
E
Eugênia, enfática:
-
Viu, mana, como avaliar é complicado e por que a avaliação deve sempre permear
as preocupações de todo educador? Para mim, avaliar é uma questão em aberto,
pronta para receber sempre novas reflexões, novos acrescentamentos.
-
Realmente - falou Eulália.
E
brincando:
- Agora quero avaliar
você.
Olhou
pela janela a tarde clara e ensolarada.
-
Você é um sol que clareia as tardes de minhas dúvidas.
As
duas irmãs se abraçaram e começaram a preparar suas aulas para o dia seguinte.
Sirley José Mendes da Silva é mestre
em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, doutor em Letras pela USP e professor
da FAR.