quinta-feira, 7 de abril de 2011

POESIA E RESPONSABILIDADE SOCIAL


                                                               De Sirley José Mendes da Silva *

Muitas vezes, pegamo-nos pensando sobre a poesia, sua definição, sua linguagem, sua matéria-prima, seu objeto, seu caráter específico no concerto das artes, sua responsabilidade social, etc.. O que pretendemos fazer nas linhas que seguem é aclarar, mesmo que de modo  parcial, algumas dessas ideias.
            Como ponto de partida, uma questão se nos coloca: o que é poesia? A palavra poesia vem do grego poiesis. Este substantivo é cognato, isto é, pertence à mesma família lexical do verbo poiein, que significa criar. Logo, se nos ativermos ao étimo da palavra, poesia é criação. E sendo criação, está em todo e qualquer ser humano.
            Vista a questão por esse lado, é possível dizer que, virtualmente, todo ser humano é poeta. A poesia é condição prototípica do homem; acompanha-o desde os primórdios, seja considerando-o como indivíduo, seja como espécie. Somos, ainda que não saibamos disso, animais poéticos por natureza. A poesia faz parte de nossa essencialidade. Nesse ponto de nossas reflexões, uma pergunta se nos impõe: se isso é assim, qual a relação entre poesia e essência humana?
Segundo Edgar Morin,  pensador francês de nosso tempo (2002, p. 58),  , existem em cada um de nós dois seres que se complementam: o homo prosaicus e o homo poeticus. Enquanto homo prosaicus buscamos atender aos apelos de ordem corporal: morar, vestir, alimentar etc. Como homo poeticus visamos aos apelos de ordem mais espiritual – o lazer (curtir uma praia, admirar a natureza, ler um bom livro, ouvir uma bela música), por exemplo. Para que nossa qualidade de vida prime-se pela excelência, faz-se necessário que essas duas forças estejam em equilíbrio. Mas isso não vem acontecendo atualmente. Levados por apelos consumistas, questionáveis, estamos privilegiando o prosaico em detrimento do poético. Este, em nome de objetivos nem sempre bem definidos, está sendo empurrado para áreas marginais da existência social. No entanto, é preciso reequilibrar esses dois polos. É preciso que resgatemos o que há de poético em cada um de nós e na sociedade. Fazer isso é atender aos reclamos da responsabilidade social.
Mas de que modo levar a cabo esse mister? Como na história do beija-flor que tentava apagar o fogo da floresta levando no bico gotículas de água apanhadas de uma fonte e, quando questionado se achava que iria conseguir seu objetivo, respondeu que estava fazendo a sua parte, resgatar o poético para nossas vidas está em cada um de nós, uma vez que a criação poética é individual, está no interno de cada cidadão(ã)..
Explicitando: como criação, a poesia é individual, ou seja, leva o jeito, a feição, do indivíduo criador. Novalis, poeta do romantismo alemão (apud CAMPOS, 1978, p. 131), afirmava que poesia é um estado de alma. É, pois a alma, a interioridade do indivíduo, que transforma a poesia em poema.
Aqui, permitam-nos ponderar sobre um aspecto que parece da maior importância: essa interioridade sofre as injunções do espaço e do tempo. Como dizia T. S Eliot, - poeta americano, que depois se naturalizou inglês – (1991, p. 32-2):   “ ...nossa sensibilidade está constantemente se transformando, assim como o mundo que nos rodeia se transforma; o que sentimos não é o mesmo que sente o chinês ou o hindu, mas também não é o mesmo que sentiam nossos ancestrais vários séculos atrás. Não é o mesmo que sentiam nossos pais; e, finalmente, nós próprios já somos totalmente diferentes do que éramos há um ano”. Ou como afirma o brasileiro Júlio Praza (1987, p. 31): “Embora o signo estético se proponha como completo, ele não pode ser lançado para fora da cadeia semiótica que é a cadeia do tempo”. E acrescentaríamos também a cadeia semiótica do espaço.
Voltemos ao étimo grego, que identifica a poesia como criação. Essa volta leva-nos a mais uma questão: é correto afirmar que toda criação é poética? Num sentido lato, geral, isso é verdade. Qualquer obra que, além da finalidade prática, procura atender ao apelo estético é poesia. Assim é poesia uma casa ou um móvel que se primam pela beleza. Uma mulher quando cuida de sua aparência está fazendo poesia. Enfim tudo o quem tem por meta atender também ao Belo é poesia. Agora existe o sentido estrito, específico, que é um trabalho artístico feito com a palavra, matéria-prima da obra poética. Nesse sentido, poesia é, no dizer do teórico espanhol Carlos Buonsoño (apud CAMPOS, 1978, p. 131), “a comunicação, pela palavra escrita, de um conteúdo (afetivo-sensório-conceptual) apreendido pelo espírito como um todo, numa síntese”.
            A poesia no sentido estrito é isto: a criação, por meio da palavra,  de uma suprarrealidade, com dados profundos, singulares, da intuição do poeta. No entanto, no nosso dia a dia, ouve-se muito falar em poesia, poema, poética. Essas palavras querem dizer a mesma coisa? Permitam-nos explicitar essa questão.
Muito embora o senso comum – e até iniciados, em situações de menor reflexão - tome essas palavras como sinônimas, em rigor, elas expressam realidade diferentes. A poesia, como afirmava Novalis, é um estado de alma, uma atmosfera interior que pode até ter motivação num evento do mundo externo, mas que se plasma no mais recôndito do ser. O poema é a concretização da poesia; é o sublimar-se do estado poético num corpo verbal. Explicitando: quando lemos uma obra poética, a configuração física, a forma verbal é poema; o conteúdo, o sentimento que ela provoca em nós,  é poesia. Já a poética é a técnica de transformação da poesia em poema.
Dissemos há pouco que a palavra é a matéria-prima da expressão poética; contudo é preciso reconhecer que essa mesma palavra é utilizada na comunicação prático-cotidiana. Para deslindar esse impasse, diremos que, embora a palavra seja a mesma, seu uso é diferente num e noutro caso. Na língua prática cotidiana a palavra, uma vez utilizada, é descartada, substituída por seu sentido. Quando dizemos, por exemplo, ”Levante”, qualquer indivíduo que dispuser a cumprir essa ordem só poderá ter o mesmo procedimento. No poema é diferente. Paul Valery, poeta e crítico francês, assegurava (s.d., p. 213)  que “O poema (...) não morre por ter vivido; ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser. A poesia reconhece-se por essa propriedade; ela tende a se fazer reproduzir em sua forma, ela nos excita a reconstituí-la identicamente”. Isso quer dizer que o leitor de poemas é também um co-autor. Pelo caráter ambíguo da palavra poética, poeta e leitor seguem os mesmos caminhos, só que em sentidos inversos.
            Nesse ponto destas reflexões, mais uma questão se nos impõe: qual é a finalidade da poesia?
A poesia tem uma finalidade sem fim. Por outras palavras, uma finalidade voltada para ela mesma. Para entendermos bem essa ideia, vamos servir-nos novamente de Paul Valéry (ibid., p. 212). O autor de Cemitério marinho contrapõe a prosa à poesia e as compara com o caminhar e o dançar. O caminhar, assim como a prosa, busca uma meta determinada, uma finalidade precisa que deve ser alcançada. Já o dançar é diferente. Este é um sistema de atos que tem o fim em si mesmo. Isso ocorre também com a poesia. Ela tem um caráter centrípeto; aqui a seta está apontando para ela mesma. Sua meta é a sensibilidade de cada leitor.
Em suma, a poesia é vital para nossa subsistência, uma vez nos proporciona uma visão mais clara e esclarecedora de nosso estar no mundo. Linhas atrás, falamos do homo prosaicus e do homo poeticus. Se acharmos o ponto de equilíbrio entre os dois polos, tornar-nos-emos seres melhores pessoal e socialmente. E, sem sombra de dúvida, ajudaremos a construir uma sociedade melhor, um mundo melhor
E para fecharmos estas reflexões,  permitam-nos uma  definição pessoal de poesia. Lá vai ela: “Poesia é uma flecha que partiu do arco e, na sua trajetória, atinge pontos-alvos vários, sem, contudo, nunca atingir o Ponto-Alvo final”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix, 1978.
ELIOT, Thomas Stern. De poesia e de poetas. Tradução por Ivan Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991.
MORIN, Edgar. Sete saberes necessários à educação do futuro, 5. ed. Tradução por Catarina Eleodora F. da Silva e Jeanne Sawaia. São Paulo/Brasília: Cortez/UNESCO, 2002.
PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
VALERY, Paul. Variedades. Tradução por Maíza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, s. d.

* Sirley José Mendes da Silva é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, doutor em Letras pela USP e professor da FAR.

2 comentários:

  1. Priscila, parabéns pelo seu Artigo. Espero que esse seja o primeiro de uma série.Seu artigo demonstra que você pesquisou bastante. Esta é a vida acadêmica.

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  2. Prof. Sirley, seu artigo nos leva a refletir sobre os meandros da poesia e o que inunda a cabeça do poeta que a faz tornar-se imortal.
    Parabéns.

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